domingo, 30 de setembro de 2012

Gira-discos #47



Deixem-me descansar a cabeça.


Hermenegildo Espinoza

terça-feira, 25 de setembro de 2012

Possível topografia dos lugares interiores #58

58. a melancolia recorrente.

Ainda o Outono não se espreguiça
e já a bílis me deprime o corpo.
Só posso em mim apregoar
a solução das folhas caducas.

Ainda tenta o sol negociar com a noite
a melhor maneira de prolongar o engano
que o dia coloca no horizonte.

E ainda assim, o corpo,
se me perguntarem,
não aprendeu a reconhecer
a tristeza sazonal.


Hermenegildo Espinoza

domingo, 23 de setembro de 2012

terça-feira, 18 de setembro de 2012

Gira-discos #46


Basta uma resposta simples.



Hermenegildo Espinoza

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Gira-discos #45



Quantas pessoas compõem uma melancolia é difícil explicar. Se me perguntares quantas teclas há num piano de cauda, também não sei, mas o piano, pelas mãos de outro alguém, também deve compor um grande número de melancólicos Somar essas teclas que me faltam à melancolia que não sei quantificar é um desperdício, tanto de alegria da expectativa como da perene melancolia. Se na vida abunda a hipocondria, Erik Satie, o que resta para os melancómicos?




Hermenegildo Espinoza

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

O crime, o castigo, um enfisema

«- Estes cigarros! - começou por fim Porfíri Petróvitch, depois de ter acendido o cigarro e recuperado o fôlego. - É um malefício, um malefício puro para a saúde, mas não consigo deixar de fumar! Tenho tosse, a garganta irritada, dispneia. Se quer saber, sou medroso, fui há dias ao doutor B..., que examina cada doente meia hora no mínimo; ele riu-se quando olhou para mim: auscultou, deu pancadinhas, não lhe convém fumar (disse ele), tem os pulmões dilatados. Mas como posso largar o tabaco? Substituo-o por quê? Não bebo, é essa a desgraça, ha-ha-ha!, infelizmente não bebo! Tudo é relativo, Rodion Románitch, tudo é relativo!»

Fiódor Dostoiévski, Crime e Castigo.



Hermenegildo Espinoza

domingo, 9 de setembro de 2012

Peregrinação





Como se a Terra corresse
Inteirinha atrás de mim
O medo ronda-me os sentidos
Por baixo da minha pele
Ao esgueirar-se viscoso
Escorre pegajoso
E sai
Pelos meus poros
Pelos meus ais
Ele penetra-me nos ossos
Ao derramar-se sedento
Nas entranhas sinuosas
Entre as vísceras mordendo
Salta e espalha-se no ar
Vai e volta
Delirante
Tão delirante
É como um sonho acordado
Esse vulto besuntado
A revolver-se no lodo
A deslizar de uma larva
Emergindo lá ao fundo
Tenho medo ó medo
Leva tudo é teu
Mas deixa-me ir

Arrasta-me à côncava funda
Do grande lago da noite
Cruzando as grades de fogo
Entre o Céu e o Inferno
Até à boca escancarada
Esfaimada
Atrás de mim
Atrás de mim
É como um sonho acordado
Esses olhos no escuro
Das carpideiras viúvas
Pelo pai assassinado
Desventrado por seu filho
Que possuiu lascivo
A sua própria mãe
E sua amante

Meu amor quando eu morrer
Ó linda
Veste a mais garrida saia
Se eu vou morrer no mar alto
Ó linda
E eu quero ver-te na praia
Mas afasta-me essas vozes
Linda

Tens medo dos vivos
E dos mortos decepados
Pelos pés e pelas mãos
E p´lo pescoço e pelos peitos
Até ao fio do lombo
Como te tremem as carnes
Fernão Mendes

Fausto, Como um sonho acordado, do álbum «Por este rio acima», 1982

"Embarcado num  jurupango,  com o Mouro Coja Ale,  feitor do capitão de Malaca,  fomos surgir no rio de Parlés no Reino de Quedá.  Neste tempo, estava o rei celebrando com grande  aparato e pompa fúnebre as exéquias da morte de seu pai,  que ele matara  às punhaladas para  casar com sua mãe que já estava  prenhe dele.  Para evitar murmurações  mandou lançar pregão que sob gravissimas mortes ninguém  falasse no que já era feito. Mas Coja Ale  era de sua natureza solto  de língua e muito  atrevido em falar o que lhe vinha à vontade.  E foi assim que,  preso por soldados, fui chamado  ao rei e  olhando para  onde ele me  acenava,  vi jazer de bruços no chão muitos corpos mortos todos metidos num charco de sangue. Entre eles o  mouro Coja Ale.  Por mais de uma grande  hora estive como pasmado,  debaixo de abano,  sem poder falar,  arremessado  aos pés  do elefante em que el-rei estava.  Depois de perdoado pelas  lamentações e desculpas toscas, mas que vinham ao momento muito a propósito, me fiz à vela muito depressa pelo grande medo e risco da morte em que me vira."                                  
Fernão Mendes Pinto, in "Peregrinação", 1614

Hermenegildo Espinoza

Valsalva #1

Não há registos de uma revolução que tenha começado na soleira de uma porta, mas daí não resulta que uma revolução, qualquer que seja, não possa um dia começar nos sítios mais improváveis. Na soleira desta porta, por exemplo. O médico apaga o cigarro, limpa a saliva seca dos cantos dos lábios, acaricia a barba grisalha e desleixada. Fumar no pátio interior do hospital tornou-se numa ostracização e o vento agreste convida a um regresso repentino ao convívio dos homens cautos. O médico ajeita o estetoscópio no pescoço. Leva a mão ao bolso direito da bata. Não sabemos o que lá está, mas o que lá está pesa-lhe. No corredor, correndo afogueada, vem uma enfermeira, gritando-lhe, doutor, doutor, o seu pai piorou, venha depressa, o seu pai piorou. Os olhos do médico, de um verde esclarecido, quedam-se no horizonte do corredor, ladeado por paredes imponentes de pedra. A enfermeira espanta-se, doutor, venha depressa, não ouviu o que lhe disse. O médico retira, por fim, a mão do bolso, o bolso que lhe pesa, embora não se saibamos o que lá está. Começa a correr atrás da enfermeira

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Sobre o cu

Brilhante prosa, habitual nos pergaminhos de Bruno Vieira Amaral, sobre o cu e o sexo anal. Também ele - o cu - vive na mudança de paradigma.


Não suficientemente referido fora das páginas do marquês, entrevisto aqui e ali num poema mais ousado ou satírico, quase sempre escondido entre imagens e analogias róseas, o cu era o eterno figurante da mega-produção que é a história sexual da humanidade. E, no entanto, quantos prazeres o cu já não proporcionara! Em paz com o seu destino, o cu aceitava que o fodessem para imediatamente regressar à condição desprezada de cagueiro. Aceitava que as luzes da ribalta incidissem sobre as sobreexploradas mamas, sobre as originais vaginas e não reclamava quando os escultores extraíam da pedra pilas murchas sem jamais pensarem sequer em imortalizar as delicadas pregas que envolvem o cu virgem. O cu era o herói esquecido dos prazeres carnais. A iguaria apreciada com deleite na intimidade, a conquista final festejada em conversas velhacas, a derradeira porta antes da rendição incondicional. Quem dava o cu já não tinha nada para dar, por isso se dizia (e ainda se diz) que há quem dê o cu e cinco tostões. Mas o cu democratizou-se e a sua conquista, outrora reservada aos mais intrépidos combatentes, banalizou-se. Ir ao cu é cu.


- Interlúdio: pego por curiosidade em Eros de Passagem, uma antologia de poesia erótica contemporânea, com selecção e prefácio de Eugénio de Andrade, e parto em busca do cu. Há bocas e vulvas, seios, peitos, mamilos, mamas e tetas, coxas e ancas, testículos, vergas e glandes. Cu, nem vê-lo. Há, sim, nádegas e, se o meu instinto está correcto, uma poderosa sugestão de sexo anal no poema Música de Cama, XV, de David Mourão Ferreira. Nuno Júdice escreve acerca de “nádegas metafísicas” sobre uma mesa de bilhar, no que a mim me parece a união possível entre o soft porn dos anos 80 (obrigado, Zalman King) e a Colóquio/Letras. É preciso chegar ao que muitos consideram o maior poeta português vivo, Herberto Helder, para o cu aparecer, ainda que na forma de ânus, o que lhe confere a dignidade poética da posologia dos Dolviran: “a aliança intrínseca de um pénis e de um ânus” é o que se arranja.


O sexo anal, outrora uma barreira intransponível, o Santo Graal das proezas sexuais é, nos nossos dias de hedonismo abastardado, diversão obrigatória. Não há cu que não aguente. Vendem-se lubrificantes e enemas para acompanhar a asseptização do sexo anal. O que antes era transgressão pela dor, pela sujidade, pelas restrições legais e religiosas é agora uma prática incentivada e aplaudida, indolor, limpa e plenamente conformada. Há-de chegar o tempo em que o sexo anal será discutido ao jantar, recomendado pelos médicos de família, com imagens da prática ao lado do círculo alimentar, ensinado nas escolas, pregado nas igrejas, inscrito em Diário da República, salvaguardado na Constituição. Se o sexo anal era revolucionário, agora trabalha das 9 às 5 numa repartição de finanças. Tratamo-lo como quem preenche um formulário. A isto chegou a civilização do espectáculo. Ir ao cu era uma actividade aristocrática, um luxo distintivo como as tapeçarias Gobelins, as faianças de Delft, uma festa na Quinta Patiño. Há não muito tempo, em 1995, um fauno como Milan Kundera podia escrever uma coisa destas sem correr o risco de ser acusado de imprecisão: “O único local verdadeiramente íntimo, perante cujo tabu até os filmes pornográficos se inclinam, é o olho do cu, a porta suprema; suprema porque a mais misteriosa, porque a mais secreta.” (A Lentidão) Pobre Kundera! Para onde correram os tempos do cu misterioso, do tabu que suscitava reverência aos filmes pornográficos, ajoelhados respeitosamente perante o derradeiro limite? Hoje, o sexo anal encontra-se à mão de semear, tão acessível e cómodo como uma viagem na Easy Jet. Aconteceu ao cu o mesmo que ao Meco. Há poucas décadas era um lugar remoto. Agora é uma marca, “Amo-te, cu”, e cada um de nós um Pedro Miguel Ramos do empreendedorismo anal. Vai-se ao cu como quem vai a uma viagem de finalistas, gregariamente, turisticamente, estupidamente. Mandar alguém apanhar no cu era um insulto. Agora é uma previsão acertada. O cu fez-se porta habitual, onde toda a gente entra e sai a qualquer hora. Em 1993, Leonard Cohen ainda cantava poeticamente o sexo anal. Hoje, é a Rosinha quem assevera que gosta é de levar no pacote.


Ora, não se pode prestar pior serviço à dignidade oculta do olho do cu do que querer celebrá-la em livro. Publicar um livro laudatório do sexo anal é da ordem dos prazeres mórbidos e infantis, como os daquelas pessoas que gostam de revelar o final dos filmes que os amigos ainda não viram. Quem gosta de levar no cu, quem realmente sente que dar o cu à penetração é uma libertação inigualável deve guardar a descoberta para si, para que outros possam libertar-se apanhando no cu. Só há libertação onde há opressão. O livro de Toni Bentley, Entrega, não é uma falácia do caralho, é uma falácia do cu. A verdadeira libertação da autora não foi a apanhar no cu, mas a escrever o livro. Em vez de se limitar a apreciar o acto, anotou as vezes em que o praticou, como uma verdadeira contabilista da sodomia, e pôs-se a extrair os fundamentos básicos de uma futura religião. E escrever um livro sobre o assunto é normalizá-lo, torná-lo socialmente aceitável, um tema de conversa. Retirá-lo da intimidade e atirá-lo para as páginas do New York Times é remeter o sexo anal para o patamar anódino da cultura geral, misturá-lo com os mais recentes avanços científicos nas neurociências ou com as notícias sobre cotações da Bolsa. Exibido orgulhosamente na praça pública, o cu, ainda que envolto num discurso de sedas para-religiosas, perde valor simbólico, degrada-se, empobrece. A introdução do livro (e vamos ficar pela introdução) intitula-se, ominosamente, A Foda Sagrada. “É divino”; “O êxtase, aprendi ao ser sodomizada, é uma experiência de eternidade num momento de tempo real”; “A paz que existe para lá da dor”; “Vim a conhecer Deus por experiência, por ser fodida no cu”; “Levar no cu oferece harmonia espiritual”; “Levar no cu dá-me esperança”; “Ele abriu-me o cu e com a primeira arremetida acabou com a minha negação de Deus”; “O sexo anal é, para mim, um acontecimento literário”; “Entre na saída. O paraíso espera-o.” Esta Santa Teresa de Ávila do sexo anal, que diz ter conhecido Deus por apanhar no cu, presta um péssimo serviço ao sexo anal e à transcendência. A história de Bentley é uma história de conversão. São Paulo chegou a Deus depois de deixar de ver, Bentley chegou a Deus abrindo o olho do cu. O seu manifesto, por ser um manifesto, um libelo jurídico a favor do sexo anal, burocratiza o que ela pensa estar a sacralizar. Codifica e ritualiza, grita “Sigam-me, cus oprimidos!” e um cu que vai atrás dos outros nunca será um cu livre. Para ser um acto libertador, o sexo anal tem de ser praticado sem esperanças de recompensas místicas. Quem procura recompensas místicas deve ir à missa, praticar o Bem, ouvir A Paixão Segundo São Mateus. Levar no cu é uma experiência de outra ordem. Toni Bentley, como uma boa iconoclasta burguesa, celebra à nova-iorquina o acto de apanhar no cu. Quanto mais é sodomizada mais se enterra em metafísica. Para Bentley, levar no cu é um exercício intelectual e espiritual. Daí que, apesar da linguagem directa e forte, fuja da escatologia. Porque Bentley, apesar de tudo, não gosta de merda. Por isso é que uma simples frase em A Grande Arte, de Rubem Fonseca, é mais libertadora do que todo o livro da ex-bailarina. Mônica, a prostituta de dezoito anos, geme enquanto é sodomizada por Thales Lima Prado: “Ai, vou encher o teu pau de merda!” Sem glória, nem Deus, nem eternidade, nem salvação pela sodomia. Apenas a negação do amor e da vida, a nostalgia primitiva da lama.»





Hermenegildo Espinoza

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Uma outra causa para a Imunodeficiência seguido da diferença entre Thailand e Taiwan

Foi publicado um artigo interessante no New England Journal of Medicine, no final do mês de Agosto (em acordês, os meses ficam minúsculos, mas eu mantenho o respeitinho desde Janus) não só por razões estritamente científicas, mas também de enquadramento geográfico, o que beneficia até os desafortunados de ignorância, na qual incluo este frágil homem que insiste em crer que Hermenegildo Espinoza é um bom nome para se dar a um filho. Esta capacidade do texto científico - o bom texto científico - é a de comunicar entre as várias áreas do saber, onde uma dúvida num artigo de investigação clínica do âmbito da imunodeficiência pode, digamos, esclarecer as dúvidas geográficas (e diplomáticas - como o imbróglio Assange-cidadão-australiano-fechado-na-embaixada-equatoriana-em-Londres-com-mandado-de-detenção-sueco-e-com medo-da-extradição-posterior-para-os-Estados-Unidos-da-América já nos iluminou, pois com pequenos lapsos se erguem conflitos) esclarecer as dúvidas, dizia, entre a distinta existência de Thailand e de Taiwan, estados soberanos e independentes, não sendo, portanto a mesma coisa. Mea culpa.
Quanto à ciência, o referido estudo (ler mais aqui e aqui) constatou a presença de uma síndrome (principalmente infecções oportunistas com micobactérias não-tuberculosas) em tudo idêntica à da infecção pelo Vírus da Imunodeficiência Humana, com a pequena curiosidade de essas pessoas não estarem infectadas. Concluiu-se que a causa era autoimune: um auto-anticorpo contra o Interferão-gama, importante citocina tanto na acção da imunidade inata como na adaptativa, principalmente na sinalização das infecções por vírus ou bactérias intracelulares.
O estudo foi realizado em hospitais de Thailand (a vulgar Tailândia) e de Taiwan. O resto da lição fica a cargo da professora Wikipedia. Podem ler na diagonal, ninguém se vai importar, nem lá do lado do sol nascente nem aqui no cantinho à beira mar plantado. Andamos devidamente preocupados com o triuvirato e a tristeza dos nossos tesouros nacionais. Haverá algo mais melancólico do que a manchete Cristiano Ronaldo está triste?



Hermenegildo Espinoza

sábado, 1 de setembro de 2012

O que sabemos do nosso passado


(...)

A surprising number of these mysteries concern female sexuality. The male orgasm, for example, serves a rather obvious seed-sowing function – but what is the point of its female equivalent? The popular hypothesis that such ecstasy enhances the likelihood of a subsequent pregnancy is, Barash informs us, entirely without evidence. The idea that it might motivate reluctant ladies also seems flawed: other animals don’t require an eruption of bliss in order to continue the family line. Perhaps it is simply a “non-adaptive by-product” – an incidental development to which evolution is indifferent?
Barash doesn’t think so, preferring to believe that it is more important than that. But in what way remains a riddle – and only one of many posed by the female body. Scientists cannot explain, for example, why women have prominent breasts even when they are not suckling children. Other mammals don’t. Yes, of course, men are drawn to these protruding sacks of fat – but why? No one knows, though theories abound.

(...)

(carregar nas passagens acima para ter acesso à totalidade do texto.)



Ensaio de Stephen Cave, no Financial Times, sobre as certezas e as dúvidas do nosso passado evolucionário. Aconselhado pelo Francisco José Viegas - não é ainda rotina imaginá-lo, em primeiro, como o nosso Secretário de Estado da Cultura, mas é bom revê-lo na blogosfera.



Hermenegildo Espinoza

Sinapses

A Origem das Espécies, de Francisco José Viegas.