terça-feira, 28 de setembro de 2010

Nem todos aguentam

Hermenegildo Espinoza

sábado, 25 de setembro de 2010

Possível topografia dos lugares interiores #17

17. costelas flutuantes são caravelas do mar que nunca irão atracar.


Um cadáver atirado ao mar
ao muito sal e outros minerais,
leva nos lábios um penoso escorbuto.
Será sempre triste ver um corpo morto,
constatar que padecemos de muitas deficiências
e nem todas elas são vitamínicas, mas enfim,
o corpo do homem atirado ao mar
jamais voltará a atracar.

Caravelas no fundo dos riftes,
companheiras de inversões magnéticas,
jamais voltarão a atracar.
Muitas delas viram o azarado Adamastor,
muitas delas caíram em eterna apneia.
Rejubilemos com a memória de mastros a bolinar
porque se ainda existir um brasão português
naufragado nessas fossas de tantos nomes a decorar,
servirá para nos lembrarmos que o mundo
dificilmente se dá ao luxo de ter um fim.

Tal como as costelas flutuantes
que jamais irão atracar,
contudo, cumprirão bem
o seu perene dever de estar.



Hermenegildo Espinoza

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Imagiologia (quase) médica #12



anátomo-tentativa*,
do Galli Pitt e do Bachiatari Sensei.




Hermenegildo Espinoza


*clicar na imagem para ver melhor.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

há festa nessa cabeça de miúdo-dos-porquês

Vim à varanda na esperança de que o ar tépido de início de Setembro me trouxesse um soporífero, algo confortável que deixasse a fadiga fazer o seu trabalho de conduzir o meu cérebro à regeneradora resposta: o sono. Quieto na varanda, o som do trânsito, das pessoas noctívagas que neste preciso momento iniciam a procissão aos bares e ao seu quotidiano nocturno, perfilam-me várias sensações de banalidade.
(Espinoza, deixa-te desses pensamentos de agonia auto-consciente)
Uma festa de fumo a esvoaçar pelos lancis da calçada. Pares de namorados, pares de concorrentes a namorados, loucura de noites sós, para onde vão os desejos sussurrados antes do raiar do dia?
(Espinoza, há festa na moradia, mas também há festa nessa cabeça de miúdo-dos-porquês)
Ver os jovens burgueses aumentar o capital da futilidade, escarrar para o lado enquanto se afia o dente para a febra mais perto, há mulheres - mulheres, sim -, que metem mais medo que muitos selvagens homens, e onde anda o nosso super-ego a rastrear inutilidades da nossa moral?
(Espinoza, a selva também cresce na cidade, ou julgavas que a humanidade era um manual protegido nos museus que ninguém visita?)
A persiana - ou adufa, o dicionário diz-nos que também se pode designar por adufa - encerram a radiação vampírica de quem, lá em baixo, suga o amplexo gaseificado dos becos sem saída, e eu escrevo, eu não sei quem, eu, o Espinoza, a pessoa que o Espinoza julga ser, aquele que o Espinoza não sabe quem é, outro que se julga o Espinoza, um guarda-livros chamado Bernardo Soares que, para viver desassossegado, encorpora todos os homens fracos de decisão e prolixos de imaginação, quem é quem, é a pergunta que devo fazer?
(Espinoza, faz como os gatos e não te questiones, acabarás por ronronar no fim também)
E este desamor forçado da minha chegada ao cansaço do dia, quando por fim tudo instila em mim uma lápide a pedir desculpa aos outros meus que não se manifestaram, um arrepio de árvores alvoraçadas, e as pálpebras que lamentam, as pálpebras que se sucedem, as pálpebras que nos convencem, as pálpebras que enfim caem,
(Dorme, amigo Espinoza, dorme)





Hermenegildo Espinoza

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Merdívoro


Existem, sim, até no dicionário.





Hermenegildo Espinoza

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Possível topografia dos lugares interiores #16

16. a inervação dos amigos recorrentes.


Esses amigos de casa e fora dela,
promotores de cordas vocais afinadas
aturam-nos até a disfonia
de querer falar tudo depressa.

Folhas de chá para a rouquidão
e o rebuçado com o senhor de barba,
coadjuvados, a bem querer,
pelo bater aconchegado nas costas,
há quem diga: caminho meio sarado.

Até que a voz não nos falte,
nem haja perigo de saltarmos
fora dos carris dessa caminhada
onde sobram os amigos recorrentes.



Hermenegildo Espinoza

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Gira-discos #25

B Fachada - Setembro

Vim dar um passeio para o sul do país / Tomai uma valsa para depurar as miudezas e os safados actos de férias. Se essa comunhão de espírito, noves fora, restar, prossiga a dança / Deixei-te em Lisboa, mas não porque quis / Tudo quanto há do mercúrio dos termómetros a escoar pela razia do regresso / Saber que te soa esta valsa que eu fiz, há-de ser coisa boa, sou eu quem to diz, mandei vir o saber de Paris / E a letra, os acordes, o tímpano de quem ouve com ouvidos de ver, e só a música resta, só os nossos passos compassados, num padrão cirúrgico, a memória na convalescença a repetir, a repetir, a repetir...

Escrevi-te uma carta de coisas de amar
Se não for entregue, não me vou desculpar
Porque o dom que consegue esta valsa a soar
Não és tu quem mo negue, não, nem quando eu voltar
Quando abrires os teus braços, nada disto já vai importar

E quando o sonho saciar vou fazer de tudo para acordar

Às vezes eu sinto uns fantasmas por perto
Ao entardecer e com o meu rulfo aberto
Faço para te prender esta valsa que é certo
Mais que para te vencer, é para ver se desperto

Lembras-me em todas as coisas de cá
E a cada passo eu me passo para lá
Mas então o que eu faço é valsar isto em fá
Para te ter num abraço que Vénus não dá
Quando o verão acabar e nós dois for só tudo o que há

E o Verão acaba, o Setembro cresce, e a rotina citadina desperta - e rima - com o prazer da (re)descoberta.

(Acaba a música, a valsa continua, nós dançamos)




Hermenegildo Espinoza