Não suficientemente referido fora das páginas do marquês, entrevisto aqui e ali num poema mais ousado ou satírico, quase sempre escondido entre imagens e analogias róseas, o cu era o eterno figurante da mega-produção que é a história sexual da humanidade. E, no entanto, quantos prazeres o cu já não proporcionara! Em paz com o seu destino, o cu aceitava que o fodessem para imediatamente regressar à condição desprezada de cagueiro. Aceitava que as luzes da ribalta incidissem sobre as sobreexploradas mamas, sobre as originais vaginas e não reclamava quando os escultores extraíam da pedra pilas murchas sem jamais pensarem sequer em imortalizar as delicadas pregas que envolvem o cu virgem. O cu era o herói esquecido dos prazeres carnais. A iguaria apreciada com deleite na intimidade, a conquista final festejada em conversas velhacas, a derradeira porta antes da rendição incondicional. Quem dava o cu já não tinha nada para dar, por isso se dizia (e ainda se diz) que há quem dê o cu e cinco tostões. Mas o cu democratizou-se e a sua conquista, outrora reservada aos mais intrépidos combatentes, banalizou-se. Ir ao cu é cu.
- Interlúdio: pego por curiosidade em Eros de Passagem, uma antologia de poesia erótica contemporânea, com selecção e prefácio de Eugénio de Andrade, e parto em busca do cu. Há bocas e vulvas, seios, peitos, mamilos, mamas e tetas, coxas e ancas, testículos, vergas e glandes. Cu, nem vê-lo. Há, sim, nádegas e, se o meu instinto está correcto, uma poderosa sugestão de sexo anal no poema Música de Cama, XV, de David Mourão Ferreira. Nuno Júdice escreve acerca de “nádegas metafísicas” sobre uma mesa de bilhar, no que a mim me parece a união possível entre o soft porn dos anos 80 (obrigado, Zalman King) e a Colóquio/Letras. É preciso chegar ao que muitos consideram o maior poeta português vivo, Herberto Helder, para o cu aparecer, ainda que na forma de ânus, o que lhe confere a dignidade poética da posologia dos Dolviran: “a aliança intrínseca de um pénis e de um ânus” é o que se arranja.
O sexo anal, outrora uma barreira intransponível, o Santo Graal das proezas sexuais é, nos nossos dias de hedonismo abastardado, diversão obrigatória. Não há cu que não aguente. Vendem-se lubrificantes e enemas para acompanhar a asseptização do sexo anal. O que antes era transgressão pela dor, pela sujidade, pelas restrições legais e religiosas é agora uma prática incentivada e aplaudida, indolor, limpa e plenamente conformada. Há-de chegar o tempo em que o sexo anal será discutido ao jantar, recomendado pelos médicos de família, com imagens da prática ao lado do círculo alimentar, ensinado nas escolas, pregado nas igrejas, inscrito em Diário da República, salvaguardado na Constituição. Se o sexo anal era revolucionário, agora trabalha das 9 às 5 numa repartição de finanças. Tratamo-lo como quem preenche um formulário. A isto chegou a civilização do espectáculo. Ir ao cu era uma actividade aristocrática, um luxo distintivo como as tapeçarias Gobelins, as faianças de Delft, uma festa na Quinta Patiño. Há não muito tempo, em 1995, um fauno como Milan Kundera podia escrever uma coisa destas sem correr o risco de ser acusado de imprecisão: “O único local verdadeiramente íntimo, perante cujo tabu até os filmes pornográficos se inclinam, é o olho do cu, a porta suprema; suprema porque a mais misteriosa, porque a mais secreta.” (A Lentidão) Pobre Kundera! Para onde correram os tempos do cu misterioso, do tabu que suscitava reverência aos filmes pornográficos, ajoelhados respeitosamente perante o derradeiro limite? Hoje, o sexo anal encontra-se à mão de semear, tão acessível e cómodo como uma viagem na Easy Jet. Aconteceu ao cu o mesmo que ao Meco. Há poucas décadas era um lugar remoto. Agora é uma marca, “Amo-te, cu”, e cada um de nós um Pedro Miguel Ramos do empreendedorismo anal. Vai-se ao cu como quem vai a uma viagem de finalistas, gregariamente, turisticamente, estupidamente. Mandar alguém apanhar no cu era um insulto. Agora é uma previsão acertada. O cu fez-se porta habitual, onde toda a gente entra e sai a qualquer hora. Em 1993, Leonard Cohen ainda cantava poeticamente o sexo anal. Hoje, é a Rosinha quem assevera que gosta é de levar no pacote.
Ora, não se pode prestar pior serviço à dignidade oculta do olho do cu do que querer celebrá-la em livro. Publicar um livro laudatório do sexo anal é da ordem dos prazeres mórbidos e infantis, como os daquelas pessoas que gostam de revelar o final dos filmes que os amigos ainda não viram. Quem gosta de levar no cu, quem realmente sente que dar o cu à penetração é uma libertação inigualável deve guardar a descoberta para si, para que outros possam libertar-se apanhando no cu. Só há libertação onde há opressão. O livro de Toni Bentley, Entrega, não é uma falácia do caralho, é uma falácia do cu. A verdadeira libertação da autora não foi a apanhar no cu, mas a escrever o livro. Em vez de se limitar a apreciar o acto, anotou as vezes em que o praticou, como uma verdadeira contabilista da sodomia, e pôs-se a extrair os fundamentos básicos de uma futura religião. E escrever um livro sobre o assunto é normalizá-lo, torná-lo socialmente aceitável, um tema de conversa. Retirá-lo da intimidade e atirá-lo para as páginas do New York Times é remeter o sexo anal para o patamar anódino da cultura geral, misturá-lo com os mais recentes avanços científicos nas neurociências ou com as notícias sobre cotações da Bolsa. Exibido orgulhosamente na praça pública, o cu, ainda que envolto num discurso de sedas para-religiosas, perde valor simbólico, degrada-se, empobrece. A introdução do livro (e vamos ficar pela introdução) intitula-se, ominosamente, A Foda Sagrada. “É divino”; “O êxtase, aprendi ao ser sodomizada, é uma experiência de eternidade num momento de tempo real”; “A paz que existe para lá da dor”; “Vim a conhecer Deus por experiência, por ser fodida no cu”; “Levar no cu oferece harmonia espiritual”; “Levar no cu dá-me esperança”; “Ele abriu-me o cu e com a primeira arremetida acabou com a minha negação de Deus”; “O sexo anal é, para mim, um acontecimento literário”; “Entre na saída. O paraíso espera-o.” Esta Santa Teresa de Ávila do sexo anal, que diz ter conhecido Deus por apanhar no cu, presta um péssimo serviço ao sexo anal e à transcendência. A história de Bentley é uma história de conversão. São Paulo chegou a Deus depois de deixar de ver, Bentley chegou a Deus abrindo o olho do cu. O seu manifesto, por ser um manifesto, um libelo jurídico a favor do sexo anal, burocratiza o que ela pensa estar a sacralizar. Codifica e ritualiza, grita “Sigam-me, cus oprimidos!” e um cu que vai atrás dos outros nunca será um cu livre. Para ser um acto libertador, o sexo anal tem de ser praticado sem esperanças de recompensas místicas. Quem procura recompensas místicas deve ir à missa, praticar o Bem, ouvir A Paixão Segundo São Mateus. Levar no cu é uma experiência de outra ordem. Toni Bentley, como uma boa iconoclasta burguesa, celebra à nova-iorquina o acto de apanhar no cu. Quanto mais é sodomizada mais se enterra em metafísica. Para Bentley, levar no cu é um exercício intelectual e espiritual. Daí que, apesar da linguagem directa e forte, fuja da escatologia. Porque Bentley, apesar de tudo, não gosta de merda. Por isso é que uma simples frase em A Grande Arte, de Rubem Fonseca, é mais libertadora do que todo o livro da ex-bailarina. Mônica, a prostituta de dezoito anos, geme enquanto é sodomizada por Thales Lima Prado: “Ai, vou encher o teu pau de merda!” Sem glória, nem Deus, nem eternidade, nem salvação pela sodomia. Apenas a negação do amor e da vida, a nostalgia primitiva da lama.»
Hermenegildo Espinoza
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