Não há registos de uma revolução que tenha começado na soleira de uma porta, mas daí não resulta que uma revolução, qualquer que seja, não possa um dia começar nos sítios mais improváveis. Na soleira desta porta, por exemplo. O médico apaga o cigarro, limpa a saliva seca dos cantos dos lábios, acaricia a barba grisalha e desleixada. Fumar no pátio interior do hospital tornou-se numa ostracização e o vento agreste convida a um regresso repentino ao convívio dos homens cautos. O médico ajeita o estetoscópio no pescoço. Leva a mão ao bolso direito da bata. Não sabemos o que lá está, mas o que lá está pesa-lhe. No corredor, correndo afogueada, vem uma enfermeira, gritando-lhe, doutor, doutor, o seu pai piorou, venha depressa, o seu pai piorou. Os olhos do médico, de um verde esclarecido, quedam-se no horizonte do corredor, ladeado por paredes imponentes de pedra. A enfermeira espanta-se, doutor, venha depressa, não ouviu o que lhe disse. O médico retira, por fim, a mão do bolso, o bolso que lhe pesa, embora não se saibamos o que lá está. Começa a correr atrás da enfermeira
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