domingo, 9 de setembro de 2012

Peregrinação





Como se a Terra corresse
Inteirinha atrás de mim
O medo ronda-me os sentidos
Por baixo da minha pele
Ao esgueirar-se viscoso
Escorre pegajoso
E sai
Pelos meus poros
Pelos meus ais
Ele penetra-me nos ossos
Ao derramar-se sedento
Nas entranhas sinuosas
Entre as vísceras mordendo
Salta e espalha-se no ar
Vai e volta
Delirante
Tão delirante
É como um sonho acordado
Esse vulto besuntado
A revolver-se no lodo
A deslizar de uma larva
Emergindo lá ao fundo
Tenho medo ó medo
Leva tudo é teu
Mas deixa-me ir

Arrasta-me à côncava funda
Do grande lago da noite
Cruzando as grades de fogo
Entre o Céu e o Inferno
Até à boca escancarada
Esfaimada
Atrás de mim
Atrás de mim
É como um sonho acordado
Esses olhos no escuro
Das carpideiras viúvas
Pelo pai assassinado
Desventrado por seu filho
Que possuiu lascivo
A sua própria mãe
E sua amante

Meu amor quando eu morrer
Ó linda
Veste a mais garrida saia
Se eu vou morrer no mar alto
Ó linda
E eu quero ver-te na praia
Mas afasta-me essas vozes
Linda

Tens medo dos vivos
E dos mortos decepados
Pelos pés e pelas mãos
E p´lo pescoço e pelos peitos
Até ao fio do lombo
Como te tremem as carnes
Fernão Mendes

Fausto, Como um sonho acordado, do álbum «Por este rio acima», 1982

"Embarcado num  jurupango,  com o Mouro Coja Ale,  feitor do capitão de Malaca,  fomos surgir no rio de Parlés no Reino de Quedá.  Neste tempo, estava o rei celebrando com grande  aparato e pompa fúnebre as exéquias da morte de seu pai,  que ele matara  às punhaladas para  casar com sua mãe que já estava  prenhe dele.  Para evitar murmurações  mandou lançar pregão que sob gravissimas mortes ninguém  falasse no que já era feito. Mas Coja Ale  era de sua natureza solto  de língua e muito  atrevido em falar o que lhe vinha à vontade.  E foi assim que,  preso por soldados, fui chamado  ao rei e  olhando para  onde ele me  acenava,  vi jazer de bruços no chão muitos corpos mortos todos metidos num charco de sangue. Entre eles o  mouro Coja Ale.  Por mais de uma grande  hora estive como pasmado,  debaixo de abano,  sem poder falar,  arremessado  aos pés  do elefante em que el-rei estava.  Depois de perdoado pelas  lamentações e desculpas toscas, mas que vinham ao momento muito a propósito, me fiz à vela muito depressa pelo grande medo e risco da morte em que me vira."                                  
Fernão Mendes Pinto, in "Peregrinação", 1614

Hermenegildo Espinoza

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