terça-feira, 20 de outubro de 2009

Manifesto de um Maldito #2 parte 1

Ou

As peripécias da Esperança Boa-Morte, da Maria do Carmo e do Espinoza.

Um médico, enfermeiro, técnico ou qualquer outro digno profissional da saúde tem de estar preparado para, face a uma situação imprevista ou anormal, poder dar o seu contributo quando tal é necessário. A experiência e as repetições de situações bem que ajudam o sistema nervoso a ganhar uma habituação que pode, a qualquer momento, despoletar um resposta racional a uma adversidade. O conhecimento teórico que adquirimos em enxurradas de matérias na universidade tem de se complementar com a personalidade de cada um. Será, porventura, perfeitamente normal que alguns de nós se adaptem mais facilmente às situações, quer seja por um maior bem-estar a lidar com as pessoas, quer pelo coerente e assimilado conhecimento científico. A um médico, entre outros, pede-se que, dentro das suas limitações, saiba conjugar esses dois factores: conhecimento científico-técnico com a predisposição variável da nossa personalidade para lidar com as pessoas e com os condicionantes do meio. De pouco vale cingirmo-nos apenas à perícia teórica ou apenas à perícia comportamental. A sua conjugação permitirá, aí sim, uma maximização de resposta.


Hoje, por volta das seis da tarde, cheguei a casa. Aguardava uma carta relativa a uns assuntos pessoais e como por vezes o carteiro, na minha ausência, deixa a correspondência com a minha vizinha de baixo, dirigi-me até à sua porta. A vizinha, de seu nome Esperança Boa-Morte, recebeu-me com o carinho habitual:
- Então, Hermenegildo, vens ver se o carteiro deixou alguma coisa?
- Nem mais, dona Esperança.
Mandou-me entrar. Enquanto foi buscar a carta que estava na cozinha, reparei que estava a empregada das limpezas da Dona Esperança - uma senhora na casa dos cinquenta talvez - sentada no sofá da sala, extremamente pálida e angustiada.
- O que tem a senhora? – sussurrei para a dona Esperança.
- Aqui a Maria do Carmo está mal-disposta, vomitou há pouco e diz que se sente muito mal, com tonturas e algum tremor – disse a dona Esperança em voz alta chegando-se ao sofá.
- Ai é? – respondi – E desde que vomitou não se sente um pouco melhor?
A empregada olhou-me, no meio da sua indisposição, com a expressão “se soubesses ao menos como eu estou, com esta angústia, queria ver se gostavas”.
- Sabe – contou a dona Esperança – aqui o meu vizinho Hermenegildo é médico.
A súbita mudança do olhar da senhora anunciou a alteração da anterior expressão para “vejam só, o raio do rapaz é médico. Ai, olhem para aquilo, com aquela barba toda por fazer e o cabelo despenteado, com cara de quem anda sempre mal com o mundo. Nem parece que é um doutor”. Escassos segundos depois estava a recíproca díade médico-paciente estabelecida. O status da minha profissão surgiu e a senhora estava agora cooperante, pronta a que eu a ajudasse, olhando com algum respeito, diria.
- Se calhar foi qualquer coisa que eu comi. – referiu – Caiu-me mal a comida e eu vomitei.
- Não tem nenhum problema de saúde, pois não? – perguntei mais por rotina do que propriamente para deslindar o que poderia ser. Não fazia qualquer ideia do que a afectava. Podia ser um simples indisposição ou má-digestão passageira sem qualquer papel sintomático. No fundo, podia ser tudo e nada.
- Sou diabética daquelas que precisam de insulina, mas ando controlada, medi de manhã e estavam bem os valores. O meu médico diz que de manhã não deve ser menor que 60 e que mais ou menos duas horas depois das refeições deve andar por volta dos 110, acho eu.
Estava bem informada, pensei. Os valores recomendados, que nem sempre são iguais para todas as entidades, não andam muito longe disso.
- E já mediu os níveis agora, dona Maria do Carmo?
- Ai, não, esqueci-me. Como estou tão mal-disposta com estas tonturas nem sequer me lembrei disso -referiu alarmada.
Foi então medir os valores.



continuo o relato amanhã...



Hermenegildo Espinoza

1 comentário:

  1. Caro Espinoza,

    acredita que mais te vai valer esssa experiência vivida do que uma recruta de Guytons, Netters, Grays... na estante!

    Cumprimentos

    Pitt

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