sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Leituras & Remédios #5


"(...)
Uma velha sentada no café treme da cabeça, não a consegue segurar, por vezes faz mesmo o gesto (de a tentar agarrar), mas também já não tem forças nas mãos, e a vida é reles, é banalidade, é asco e sangue. Nos cafés, nas camas com os amantes, na cadeira à espera da morte do pai, na rua, desprevenido, morre-se em todo lado, em todo o espaço e em todo o tempo; já deve ter acontecido (às centenas) durante a missa, durante um funeral já milhares devem ter morrido, caíram no chão, pensa-se de imediato num desmaio: por quem choramos agora se há dois mortos e para onde vamos se há dois cortejos a avançar em direcções opostas?
(...)"


do texto A velha que treme da cabeça, no café, página 9.

"Uma vez senti algo semelhante. Tinha que pagar a um oculista. Levava o cheque já preenchido. Cheguei ao sítio e disseram-me: Morreu ontem, num desastre de carro. Tinha o cheque em nome dele, e agora estava morto. O primeiro pensamento foi: se eu tenho um cheque para lhe pagar, ele não pode estar morto. O segundo pensamento, passados uns segundos, foi: vou ficar com o dinheiro. O terceiro pensamento foi: como é que a tua cabeça foi capaz ter aquele 2º pensamento? O quarto foi: toda a gente pensa todas as hipóteses numa situação, mesmo as hipóteses nojentas.
Mas o senhor tinha um pai ainda vivo, e eu rasguei o cheque antigo e escrevi o nome do pai no cheque - era quase o mesmo, só mudava a primeira palavra. Estávamos os dois num restaurante de comidas rápidas, de pé. E o pai do meu oculista, que morrera num desastre de automóvel dois dias antes, estava vestido de preto e estava triste, falava pouco, e tinha os olhos baixos. Mas recebeu o cheque."

do texto Outro desastre, página 43.

"(..)
Entrei na casa. Um piano sem muitas teclas, algumas ainda fazem som, mas a voz de um animal ferido fica diferente.
- Este piano já não pode tocar.
Os animais (como os homens) quando estão próximos da morte ficam com a voz semelhante à dos pais. Assusta, mas é bom.
Podes pôr asas atrás das costas a fingir que és anjo. Mas serás enterrado à mesma.
(...)"


do texto O pescoço grande do cisne, página 89.


Gonçalo M. Tavares,
água, cão, cavalo, cabeça
edição da Editorial Caminho


(a leitura como um dos melhores remédios. Daqueles crus e sem a desnecessária epiderme camuflante. Muito mais poderia trancrever-se. O homem e o mundo, o homem e o mundo. E o que anda lá no meio. Para um bom entendedor.)


Hermenegildo Espinoza

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