quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Leituras & Remédios #7



"(...)
Disse uma vez a uma mulher:«Não creio que possa envelhecer contigo, mas gostaria de ter um filho teu antes de nos separarmos.»Tratava-se de uma enorme declaração de amor, mas a minha sinceridade não comoveu o âmago da minha amada; fez as malas e pôs-se na alheta no dia seguinte. Essa santa tentara durante três anos converter-me à conjugalidade. Deixava o seu shampoo esquecido na minha banheira. Eu devolvia-lho, com um grande sorriso, no encontro seguinte. Pedia-me licença para arrumar uma blusa extra no meu roupeiro. Uma ocasião disse-me:
- Eu sei que, lá bem no fundo, tu precisas muito do meu amor...
Eu respondi-lhe com os confortáveis estereótipos do teu discurso, mestra definitiva - e ainda nem te conhecia:
- Os homens-que-lá-bem-no-fundo são um truque de ilusionismo que as mulheres inventaram para poderem continuar a ser vítimas sem ofender as conquistas da sociedade contemporânea.
(...)"


página 47 (negrito conforme original)


"(...)
Ando à caça de palavras resplandescentes, tropeço nelas dentro e fora da vida, interpreto, magoo-me, interpreto outra vez, sujo-me, borro a pintura da cara que não tenho, das caras que fui desenhando sobre a cara que me faltou - mas ah, os jovens, nunca. Nunca soube o que eram «os jovens», nunca soube o que era «o meu tempo».
(...)"

página 51


"(...)
Tu nunca tinhas frio e achavas que tiritar era um sintoma de fraqueza espiritual. Desprezavas casacos e abafos. Nunca estiveste doente. Gostavas de mergulhar em ondas frias, a tua voz soava com a força do próprio mar. Perto da tua campa ainda fresca, o epitáfio de um homem que devia ser eu. «Aqui jaz alguém que nunca quis morrer, que teve a sorte de nascer homem, não Deus.»"

página 152


"(...)
O que importa não é o enredo, a forma, nem sequer a cor. O que importa é a circulação conjunta de um corpo e de uma alma em torno do despojado sedimento da sua verdade."

página 236


"(...)
- Cuidado, Sininho. Corre!
(...)
Haverá um cheiro a juventude perdida nesse relvado, há sempre um cheiro que só se descobre depois na relva molhada. Mas já não me lembro como era, fica longe, longe, cada vez mais longe."


página 239



Inês Pedrosa
Fazes-me Falta

edição de bolso Booket
págs: 239

(a leitura como um dos melhores remédios. como pode a morte separar uma ligação tão intensa entre duas pessoas? contar uma história a dois. chora quem fica, chora quem foi. sorriem os dois. há uma falta indelével. e as simbioses ad aeternum)

fotografia da autoria de Hermenegildo Espinoza


Hermenegildo Espinoza

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