quarta-feira, 11 de novembro de 2009

do espinoza #10

Lembro-me do barulho áspero das gaivotas aos círculos sobre a minha cabeça. Lembro-me da Reitoria sombria a pingar nas sombras e do eléctrico a cavalgar os carris como a fricção dos dedos pelo frio. Lembro-me da espessura das ruelas do Porto, lembro-me das capas negras e das comissuras dos lábios das raparigas de cabelos soltos. Queria da vida um istmo, uma passagem para o lado de lá da estrada, para os pavimentos nivelados pelo nosso andar. Lembro-me de não haver inclinações, da calçada rectilínea e da fachada manchada do egrégio Hospital de Santo António. Relembro as comissuras dos lábios das raparigas trajadas. Lembro-me de fechar as mãos como um tubo, de sentir a ponta dos dedos como um epitélio de transição para algo maior. Com o tempo sabemos que haverá uma hora em que o comprimento do nosso corpo ultrapassará o comprimento da calçada, pois somos a soma dos nossos dias e dos dedos daqueles que nos tocaram. Lembro-me da minha primeira namorada descer as escadas do instituto, nunca esquecerei o seu sulco naso-geniano: o mais perfeito que encontrei. Depois dela se subtrair à minha vida, de me ter encurtado a distância na calçada, jamais voltei a olhar para outros sulcos naso-genianos. Só as comissuras dos lábios. Lembro-me de só querer subir as escadas e ir para o átrio do instituto. Lembro-me do cheiro, tão entranhado que está na pele e no hipocampo. Lembro-me de não querer mais nada na vida. Acabo desde aí os dias tentando medir a minha distância na calçada. Coloco um pé na sola da entrada da Lello e vislumbro ao fundo o castanho do instituto. Tento avançar com a outra perna e verificar se chego até à fachada do Santo António. Tenho a perna curta, mas aos poucos irei lá.




Hermenegildo Espinoza

2 comentários:

  1. a distancia é em tudo relativa. se calhar caminhas na "calçada" errada...

    ResponderEliminar
  2. Pois claro, caro anónimo, pois claro. Vou encetar os devidos esforços para discernir se tal é, de facto, verdade. Vamos ver se o consigo, mas pelo menos da subjectividade das perspectivas já ninguém nos livra. Felizmente.

    Hermenegildo Espinoza

    ResponderEliminar