Lembro-me do barulho áspero das gaivotas aos círculos sobre a minha cabeça. Lembro-me da Reitoria sombria a pingar nas sombras e do eléctrico a cavalgar os carris como a fricção dos dedos pelo frio. Lembro-me da espessura das ruelas do Porto, lembro-me das capas negras e das comissuras dos lábios das raparigas de cabelos soltos. Queria da vida um istmo, uma passagem para o lado de lá da estrada, para os pavimentos nivelados pelo nosso andar. Lembro-me de não haver inclinações, da calçada rectilínea e da fachada manchada do egrégio Hospital de Santo António. Relembro as comissuras dos lábios das raparigas trajadas. Lembro-me de fechar as mãos como um tubo, de sentir a ponta dos dedos como um epitélio de transição para algo maior. Com o tempo sabemos que haverá uma hora em que o comprimento do nosso corpo ultrapassará o comprimento da calçada, pois somos a soma dos nossos dias e dos dedos daqueles que nos tocaram. Lembro-me da minha primeira namorada descer as escadas do instituto, nunca esquecerei o seu sulco naso-geniano: o mais perfeito que encontrei. Depois dela se subtrair à minha vida, de me ter encurtado a distância na calçada, jamais voltei a olhar para outros sulcos naso-genianos. Só as comissuras dos lábios. Lembro-me de só querer subir as escadas e ir para o átrio do instituto. Lembro-me do cheiro, tão entranhado que está na pele e no hipocampo. Lembro-me de não querer mais nada na vida. Acabo desde aí os dias tentando medir a minha distância na calçada. Coloco um pé na sola da entrada da Lello e vislumbro ao fundo o castanho do instituto. Tento avançar com a outra perna e verificar se chego até à fachada do Santo António. Tenho a perna curta, mas aos poucos irei lá.
Hermenegildo Espinoza
Hermenegildo Espinoza
a distancia é em tudo relativa. se calhar caminhas na "calçada" errada...
ResponderEliminarPois claro, caro anónimo, pois claro. Vou encetar os devidos esforços para discernir se tal é, de facto, verdade. Vamos ver se o consigo, mas pelo menos da subjectividade das perspectivas já ninguém nos livra. Felizmente.
ResponderEliminarHermenegildo Espinoza