quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Leituras & Remédios #10



A leitura como um dos melhores remédios.
Em 1947, enquanto trabalha nos serviços administrativos dos Hospitais Civis de Lisboa, José Saramago – assim o próprio nos conta no Aviso que precede a história deste seu livro – conclui, aos 24 anos, aquele que virá a ser o seu primeiro romance publicado, não sem antes um infindável novelo de peripécias acontecer. Entre o manuscrito original que desaparece da editora para o qual o mandara, até aparecer noutra editora onde, sendo chamado, é convencido a abdicar dos direitos de autor e consentindo a transformação do título original de “A Viúva” para o definitivo “Terra do Pecado”. Este último era mais atractivo comercialmente, garantiam. E assim o primeiro livro de José Saramago surgiu no meio literário português, perdendo-se depois no tempo. Só em 1997, o autor o voltaria a incluir na sua bibliografia, possibilitando a leitura de uma nova edição do livro.

Como primeiro registo de um escritor que, décadas mais tarde, acabaria por ganhar o maior prémio literário do planeta, uma exigente análise depara-se logo nas primeiras páginas com o inegável: esta é uma obra quase não-saramaguiana, isto é, vislumbrando toda a sua obra desde que se tornou um notável nas letras portugueses, ou seja, desde que a sua popularidade tardia irrompeu (em 1980, com a publicação de Levantado do Chão) para níveis altíssimos, este livro não se enquadra na pessoa de Saramago, pelo menos aquela que estes muitos anos nos têm habituado, para quem o lê. Para começar e com maior contraste, a escrita de Saramago é normal, normal no sentido de que as regras de pontuação são inteiramente respeitadas: os diálogos, os parágrafos mais frequentes, os pontos finais a colocar pausas no fôlego da escrita. Tudo, está bom de ver, diferente do seu estilo actual: períodos longos, diálogos integrados na narração e separados por vírgulas, bem como o narrador omnipresente e omnisciente. Depois, o tema, neste caso, quase corriqueiro, sem grandes alaridos: uma mulher ainda jovem que se vê viúva com dois filhos ainda pequenos para criar e a responsabilidade de continuar a gerir os negócios da quinta da família, assim como todo o mundo rural ainda preso a velhos costumes (representado grandemente na personagem de Benedita, a governanta da casa), sedento de apontar o dedo às reviravoltas na vida de Maria Leonor (a viúva), o seu fugaz envolvimento com o irmão do seu falecido marido e a relação ambivalente com o médico da vila e amigo de longa data da família, o doutor Viegas, um ateu confesso e um arauto de um mundo moderno, deslocado do tradicionalismo português. Todo este enredo também se demarca dos temas fracturantes que deram a Saramago a fama: a humanidade, a morte, a política, a religião e o nosso lugar no mundo. Não quer isto dizer que eles não aparecem na história (a habitual crítica mordaz à religião, ao catolicismo, aparece já em doses consideráveis nas palavras deste jovem Saramago) mas a magnitude com que eles são expostos é que não faria lembrar o Saramago sempre cáustico e irónico dos nossos dias.
Contudo, para matar a curiosidade que nos permite tentar perceber como chegamos a ser o que somos, como se processa a maturidade que nos faz bons e argutos naquilo que trabalhamos, este livro, duro e directo dentro das suas paredes de quase trezentas páginas - porém, de suave extrapolação para o mundo -, dá uma espreitadela ao jovem Saramago que nunca se lembraria, naquele ano de 1947, de vir a ser um expoente do mundo artístico português, o único português agraciado com o Nobel da Literatura.

(E agora é aquela altura em que peço perdão aos bons críticos literários por me ter intrometido. Que venham as pedras, sempre dá para aprender a me desviar delas)


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José Saramago,
Terra do Pecado,
edição da Editorial Caminho.





Hermenegildo Espinoza

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