sexta-feira, 5 de junho de 2009

Devaneios Meditacionais #4


Gashi miuchi,



Aproveito o momento em que as forças retomam ao meu corpo para vos deixar com uma nova reflexão. Serei breve, esta repolarização energética é efémera.



Esta semana de repouso no leito de uma morte anunciada e passada comigo estendido no velho colchão rasteiro multi-secular teve o poder de despertar essa faceta humanitária que a futilidade das nosssas actividades diárias tem o prazer de desleixar. Até agora.
Deixando-me levar pela visão distante daqueles que a sociedade marginaliza diariamente, fui levitando lentamente a minha aura conduzindo todo e cada pedacinho de chi até ao hipocampo do meu cérebro, onde me encarreguei de encarcerar esta memória, que me acompanhará, decerto, independentemente da duração da minha vida terrena.
Não havia muito que observar. Havia, sim, o suficiente para um velho consciencioso acamado apreender daquela realidade, nunca o interpretando como divertimento ou passatempo, mas sempre com o maior sonkei e a mais sincera shinsei, adivinhando a história daquela alma, especulando e vasculhando-lhe o passado, pela técnica falível da indução.

A sua acção nada mais era que a ingestão de um copo de leite quente. Observava-lhe os goles esfaimados daquele néctar cálcico a que a maioria tem livre acesso, mas ele não. Para conservar o calor que teimava escapar num ténue sopro de fumo pela parte superior do copo, bebia-o depressa, enchendo rapidamente o estômago já atrofiado pelo "desuso". Aquele seu momento de triunfo e de gula - que nem esse Deus católico teria coragem de classificar como pecado - sorviam-lhe o fôlego e rasgavam-lhe um sorriso de orelha a orelha. Os restantes transeuntes que gentilmente se apinhavam com a pressa do seu pequeno almoço tinham a bondade de o tratar educadamente, havendo inclusivé quem se comovesse a essa felicidade momentânea de um andrajoso homem que por momentos voltava a ser senhor.



O momento foi fugaz, mas à partida foi-lhe carregada a maremita com munições - uma saca de pães acompanhava-o, doada por mais um anónimo sensibilizado, ao qual a fraca alfabetização mundana deste sem abrigo respondeu com a sua maior eloquência de educação: um obrigado sincero!
Nessa manhã soube que o mundo tinha a lição bem estudada, afinal de contas. Todo aquele núcleo de pessoas freneticamente hiperactivas na pressa de chegarem ao seu turno laboral, pararam por momentos contribuindo para a acção de simbiose que faz falta ao mundo actual: uma ajuda a quem precisa em troca de sorriso.



Recostei-me na cama. Estava imune à dor. Gentilmente acariciando a caneca com a tremura de uma mão um pouco menos débil segurei a caneca e dei um gole no chá frio que sobrara da noite anterior. Sorri, concluindo que a ausência de um Sensei talvez já não fizesse tanta falta assim, afinal. Venha alguém dizer-me o contrário.



Sonkei ken Ichibun,


Bachiatari Sensei

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