"- O 3. Quero o número 3!", pediu. E eu dei-lho. Afinal é esta a minha função. Servir de material as luvas ensanguetadas que recobrem as mãos dos cirurgiões, estejam eles na sua simplicidade rotineira de prática "anti-trembling" ou a retirar um projéctil alojado num pâncreas ou num pulmão do drogado do fundo da rua, possivelmente infectado com HIV que dera entrada em choque nas urgências à meia, 2, 3 horas atrás, dependendo do dia e da pontaria do aspirante a homicida.
É frequente sentir a frustração que quer desviar o meu profissionalismo e partir com violência para o brilhantemente prestigiado e arrogante cirurgião mais próximo, fazendo-o engolir o diploma Honoris Causa pendurado atrás da secretária à vista do próximo paciente, ou lançando pela janela todas as fotos de congressos, de apertos de mão ao Dalai Lama e a Sua Santidade, as revistas sublinhadas com o novo modelo Mercedes anotado ao lado com post-it's de extras a requisitar, entre tantas outras coisas. Não que seja um tipo violento. Não sou. Gosto de tomar o meu Capuccino enquanto faço um novo puzzle, de jogar xadrez e tocar piano. Não cultivo a violência nem nunca toquei nos meus filhos, mas há coisas que o próprio Diabo põe na Terra, já dizem os antigos, e Deus me livre se estes cirurgiões ricos, de luto para o mundo, não vêm desse planalto flamejante em tons de vermelho.
Daquela sala de convivio, só gosto de um. O Doutor Elias. O experiente e douto médico que se senta sempre por baixo do relógio da Sala dos Médicos a ler a Visão e a Science, quando não está a pensar no seu próximo artigo a ser reconhecido mundialmente, com os seus headphones nos ouvidos, ninguém sabe bem a ouvir o quê, a mascar chiclets perfumando o espaço com o cheiro a melão que delas advém. Gosto de falar com ele, pronto. Como dizia o meu pai, Deus o tenha, "brilhante e sem peneiras, meu filho!". Ambos odiamos o brasileiro do Roger, apesar de a nossa profissão nos obrigar a conviver com esse indivíduo, se bem que de nós os dois, nao sou aquele cujo desagrado passa prontamente mais despercebido. Mas que hei-de dizer? Não sou um simples cirurgião formado nas celestiais academias de medicina deste mundo. Contento-me com o curso que me dota de capacidade de conhecer em pormenor os objectos que compõem o leque de "ferramentas" do bloco operatório, e tenho a função de os fornecer a quem precisa. Afinal para quê mais serve um curso de 4 anos com dois de mestrado em bloco operatório? Bastante justo para um vencimento anual de 18.700 euros, não? Digamos que sabem a pouco as 8 horas diárias passadas num bloco operatório; Perdão, esqueci-me das horas extras não remuneradas. Sou enfermeiro, não sou médico, e muito menos matemático. Os senhores doutores da administração não acham justo e olha, lá tenho eu que me amanhar.
Não sou tão leigo quanto pensam, o Elias sabe disso. Enquanto o Roger desvia doentes para a sua clinica privada, sob falsos pretextos, e o Melo copula a quarentona do dia a porta fechada no gabinete, sem contar com as enfermeiras que "vão certificar diagnósticos" e a cunhada, eu saboreio o meu café à espera do momento certo. Desvendar ou nao desvendar? Eis a questão! A minha mulher gosta de novelas. Passa o dia a vê-las e a ler revistas sobre os finais, enquanto espera que os miúdos saiam da escola. Isto quando não tem que ser internada novamente ou recorrer a uma dose de quimioterapia extra, e mesmo assim vá, lá se arranja a televisão para dar o jeito.
Bom, como não tenho nem jeito para a escrita, nem capacidades de medium para prever o dia de amanhã e adivinhar o final, aguardo o momento certo para desvendar o mistério do meu plano. Foi o Elias que sugeriu, mas "faltam-lhe os colhões para o fazer", segundo diz -sim, porque os médicos também falam mal. Compreendo-o. Se eu tivesse um vencimento clínico de quase 75.000 euros por mês e um prestígio além fronteiras sem nunca sequer ter apanhado uma bebedeira, também já os tinha mirrado. Mas eu sou eu, e vou tão longe como fugir para a marquise a meio da noite para poder fumar ganza às escondidas.
Sou enfermeiro, não sou médico. Mas sou maldito.
Alter Ego
É frequente sentir a frustração que quer desviar o meu profissionalismo e partir com violência para o brilhantemente prestigiado e arrogante cirurgião mais próximo, fazendo-o engolir o diploma Honoris Causa pendurado atrás da secretária à vista do próximo paciente, ou lançando pela janela todas as fotos de congressos, de apertos de mão ao Dalai Lama e a Sua Santidade, as revistas sublinhadas com o novo modelo Mercedes anotado ao lado com post-it's de extras a requisitar, entre tantas outras coisas. Não que seja um tipo violento. Não sou. Gosto de tomar o meu Capuccino enquanto faço um novo puzzle, de jogar xadrez e tocar piano. Não cultivo a violência nem nunca toquei nos meus filhos, mas há coisas que o próprio Diabo põe na Terra, já dizem os antigos, e Deus me livre se estes cirurgiões ricos, de luto para o mundo, não vêm desse planalto flamejante em tons de vermelho.
Daquela sala de convivio, só gosto de um. O Doutor Elias. O experiente e douto médico que se senta sempre por baixo do relógio da Sala dos Médicos a ler a Visão e a Science, quando não está a pensar no seu próximo artigo a ser reconhecido mundialmente, com os seus headphones nos ouvidos, ninguém sabe bem a ouvir o quê, a mascar chiclets perfumando o espaço com o cheiro a melão que delas advém. Gosto de falar com ele, pronto. Como dizia o meu pai, Deus o tenha, "brilhante e sem peneiras, meu filho!". Ambos odiamos o brasileiro do Roger, apesar de a nossa profissão nos obrigar a conviver com esse indivíduo, se bem que de nós os dois, nao sou aquele cujo desagrado passa prontamente mais despercebido. Mas que hei-de dizer? Não sou um simples cirurgião formado nas celestiais academias de medicina deste mundo. Contento-me com o curso que me dota de capacidade de conhecer em pormenor os objectos que compõem o leque de "ferramentas" do bloco operatório, e tenho a função de os fornecer a quem precisa. Afinal para quê mais serve um curso de 4 anos com dois de mestrado em bloco operatório? Bastante justo para um vencimento anual de 18.700 euros, não? Digamos que sabem a pouco as 8 horas diárias passadas num bloco operatório; Perdão, esqueci-me das horas extras não remuneradas. Sou enfermeiro, não sou médico, e muito menos matemático. Os senhores doutores da administração não acham justo e olha, lá tenho eu que me amanhar.
Não sou tão leigo quanto pensam, o Elias sabe disso. Enquanto o Roger desvia doentes para a sua clinica privada, sob falsos pretextos, e o Melo copula a quarentona do dia a porta fechada no gabinete, sem contar com as enfermeiras que "vão certificar diagnósticos" e a cunhada, eu saboreio o meu café à espera do momento certo. Desvendar ou nao desvendar? Eis a questão! A minha mulher gosta de novelas. Passa o dia a vê-las e a ler revistas sobre os finais, enquanto espera que os miúdos saiam da escola. Isto quando não tem que ser internada novamente ou recorrer a uma dose de quimioterapia extra, e mesmo assim vá, lá se arranja a televisão para dar o jeito.
Bom, como não tenho nem jeito para a escrita, nem capacidades de medium para prever o dia de amanhã e adivinhar o final, aguardo o momento certo para desvendar o mistério do meu plano. Foi o Elias que sugeriu, mas "faltam-lhe os colhões para o fazer", segundo diz -sim, porque os médicos também falam mal. Compreendo-o. Se eu tivesse um vencimento clínico de quase 75.000 euros por mês e um prestígio além fronteiras sem nunca sequer ter apanhado uma bebedeira, também já os tinha mirrado. Mas eu sou eu, e vou tão longe como fugir para a marquise a meio da noite para poder fumar ganza às escondidas.
Sou enfermeiro, não sou médico. Mas sou maldito.
Alter Ego
...Caro Maldito.
ResponderEliminarTens de ter cuidado com as generalizações que fazes!Falas exactamente em casos pontuais, como se os visses em todo o lado... Ouve il segreto que te vou dizer: enquanto que tu invejas a vida profissional de um médico, ele inveja, mais do que imaginas, a tua vida social. Agora pensa comigo: achas que o Honoris Causa é dado de mão beijada? E digo-te mais: estou quase certo de que não vês um Honoris causa "com o novo modelo Mercedes anotado ao lado com post-it's de extras a requisitar".
A tua noção de realização pessoal é puramente materialista... para mim, nem maldito és. Quanto muito, meio maldito.
Apesar de tudo, escreves bem.
Saudações
Invejar a vida de um médico é aquilo que meio mundo faz, mas eu nao faço. Trato de descrever, não de cobiçar, caro e prestigiado amigo.
ResponderEliminarFormalidades à parte, vida de enfermeiro tem tanta sobrecarga horária como o horário de um médico; ambos fazemos bancas, ambos "comemos" micróbios dois dias seguidos sem nos deitarmos 10 minutos que sejam na maca mais próxima; Esquece a vida social, colega maldito. De facto, se fosse essa a questão, manda a hierarquia social que o médico viaje em Congressos, seja distinguido em festas, tome partido em missões nos mais diversos países e tenha maiores hipóteses de engate, e continua por aqui fora, ou estou falando mentira?
E não será afinal o materialismo mais pendente para a classe com mais posses?
Atribuo a inteligência ao médico pelo seu sucesso escolar, e tiraria o chapéu a qualquer Honoris Causa decente, mas não àqueles que não merecem o respeito a que me digno porque não me tratam como igual, só porque os meus miolos estouraram quando passava pelo secundário. Como disse, caro Pitt, faço a mais coreografada vénia do ballet russo ao meu brilhante amigo Elias, e acredita que ele não anda de Carocha. O que me "faz comichão" não é ser um médico, é ser-se uma pessoa mal formada que tira partido de uma posição social de prestígio e glamour para fazer outros de parvos e moldar o mundo à sua imagem.
Termino com a magia do dinheiro no ar: O dinheiro recolhido nas clinicas nem sempre é usado só para a manutenção e não são só os correctores da bolsa e os traficantes que se vêm nos filmes a lavar e a extraviar dinheiro. Dinheiro por baixo da mesa + comité internacional = Honoris Causa. E não seria o primeiro assim.
O que dirias de um médico sem simpatia e que não pousa os olhos no doente durante a consulta, com 3 diplomas pregados na parede? Só o meu pai sabe as palavras certas...
Cordialmente atesto para finalizar que não são generalizações e a carapuça serve a quem tem o tamanho de cabeça certo.
Aceito o desmentido de que não seja um maldito, e atribuo-o à confusão que anda por essas cabeças a tentar desvendar a identidade deste estranho.
Sublimes cumprimentos a todos
Dito dessa maneira, parece que tens alguma razão. Contudo, não vou entrar num mundo do qual conheço pouco. Não sou estudante de medicina, apenas revoltei-me perante o teu "julgamento final" aos médicos.
ResponderEliminarNota: sinto me ofendido! porque haveria de ser um tal Pitt? Desculpa, mas deves andar a confundir identidades.
Saudações
Pista falsa ou pista verdadeira?
ResponderEliminar"Ouve il segreto (...)" !
O jogo do mistério, do oculto, do bloqueio, de arrancar cabelos é malicioso.
Alter Ego. O que quer dizer? Um anagrama? Talvez. Uma palavra de sentido lato? Digamos que é uma hipótese plausível.
Horas de xadrez e de puzzles treinaram a minha paciência e destreza mental, quase roçando pela agorafobia "Espinoziana". Aprendi que não é preciso saber meditar para pensar em planos eficientes calmamente nem é preciso ter Mestre no nome para ser discípulo da sabedoria. Escondo a cara, mas não atrás de uma fotografia pós operatório que teima em aparecer - uso o véu do poder psicológico e virtual. Gostei em tempos de brincar aos índios e cowboys, nunca tendo encontrado um "pele vermelha" tao eruditamente equilibrado e humorado como este maldito. Sedutor? Nunca fui, mas não temo concorrência de um Clooney apagado: bastar-me-iam palavras tão mais simples que as de um tal Pataca com um dialecto por demais luxuoso e demasiado eloquente, para provar um papel de Doutor Melo, por um dia.
Gosto do que tratam, gosto da vossa escrita, gosto da vossa sátira, malditos. Faço-vos a vénia, a que respeitosamente mereceis.
Digo-vos: O lugar do morto é para aqueles que entraram no sempre nobre icbas, no ano em que nuestros hermanos foram campeões europeus pela última vez.
Denis Diderot dizia: "A imortalidade é uma espécie de vida que nós adquirimos na memória dos homens ", e este é o meu voto de sucesso para todos vós.