segunda-feira, 11 de maio de 2009

#1

"- O 3. Quero o número 3!", pediu. E eu dei-lho. Afinal é esta a minha função. Servir de material as luvas ensanguetadas que recobrem as mãos dos cirurgiões, estejam eles na sua simplicidade rotineira de prática "anti-trembling" ou a retirar um projéctil alojado num pâncreas ou num pulmão do drogado do fundo da rua, possivelmente infectado com HIV que dera entrada em choque nas urgências à meia, 2, 3 horas atrás, dependendo do dia e da pontaria do aspirante a homicida.
É frequente sentir a frustração que quer desviar o meu profissionalismo e partir com violência para o brilhantemente prestigiado e arrogante cirurgião mais próximo, fazendo-o engolir o diploma Honoris Causa pendurado atrás da secretária à vista do próximo paciente, ou lançando pela janela todas as fotos de congressos, de apertos de mão ao Dalai Lama e a Sua Santidade, as revistas sublinhadas com o novo modelo Mercedes anotado ao lado com post-it's de extras a requisitar, entre tantas outras coisas. Não que seja um tipo violento. Não sou. Gosto de tomar o meu Capuccino enquanto faço um novo puzzle, de jogar xadrez e tocar piano. Não cultivo a violência nem nunca toquei nos meus filhos, mas há coisas que o próprio Diabo põe na Terra, já dizem os antigos, e Deus me livre se estes cirurgiões ricos, de luto para o mundo, não vêm desse planalto flamejante em tons de vermelho.
Daquela sala de convivio, só gosto de um. O Doutor Elias. O experiente e douto médico que se senta sempre por baixo do relógio da Sala dos Médicos a ler a Visão e a Science, quando não está a pensar no seu próximo artigo a ser reconhecido mundialmente, com os seus headphones nos ouvidos, ninguém sabe bem a ouvir o quê, a mascar chiclets perfumando o espaço com o cheiro a melão que delas advém. Gosto de falar com ele, pronto. Como dizia o meu pai, Deus o tenha, "brilhante e sem peneiras, meu filho!". Ambos odiamos o brasileiro do Roger, apesar de a nossa profissão nos obrigar a conviver com esse indivíduo, se bem que de nós os dois, nao sou aquele cujo desagrado passa prontamente mais despercebido. Mas que hei-de dizer? Não sou um simples cirurgião formado nas celestiais academias de medicina deste mundo. Contento-me com o curso que me dota de capacidade de conhecer em pormenor os objectos que compõem o leque de "ferramentas" do bloco operatório, e tenho a função de os fornecer a quem precisa. Afinal para quê mais serve um curso de 4 anos com dois de mestrado em bloco operatório? Bastante justo para um vencimento anual de 18.700 euros, não? Digamos que sabem a pouco as 8 horas diárias passadas num bloco operatório; Perdão, esqueci-me das horas extras não remuneradas. Sou enfermeiro, não sou médico, e muito menos matemático. Os senhores doutores da administração não acham justo e olha, lá tenho eu que me amanhar.
Não sou tão leigo quanto pensam, o Elias sabe disso. Enquanto o Roger desvia doentes para a sua clinica privada, sob falsos pretextos, e o Melo copula a quarentona do dia a porta fechada no gabinete, sem contar com as enfermeiras que "vão certificar diagnósticos" e a cunhada, eu saboreio o meu café à espera do momento certo. Desvendar ou nao desvendar? Eis a questão! A minha mulher gosta de novelas. Passa o dia a vê-las e a ler revistas sobre os finais, enquanto espera que os miúdos saiam da escola. Isto quando não tem que ser internada novamente ou recorrer a uma dose de quimioterapia extra, e mesmo assim vá, lá se arranja a televisão para dar o jeito.
Bom, como não tenho nem jeito para a escrita, nem capacidades de medium para prever o dia de amanhã e adivinhar o final, aguardo o momento certo para desvendar o mistério do meu plano. Foi o Elias que sugeriu, mas "faltam-lhe os colhões para o fazer", segundo diz -sim, porque os médicos também falam mal. Compreendo-o. Se eu tivesse um vencimento clínico de quase 75.000 euros por mês e um prestígio além fronteiras sem nunca sequer ter apanhado uma bebedeira, também já os tinha mirrado. Mas eu sou eu, e vou tão longe como fugir para a marquise a meio da noite para poder fumar ganza às escondidas.
Sou enfermeiro, não sou médico. Mas sou maldito.

Alter Ego

4 comentários:

  1. ...Caro Maldito.

    Tens de ter cuidado com as generalizações que fazes!Falas exactamente em casos pontuais, como se os visses em todo o lado... Ouve il segreto que te vou dizer: enquanto que tu invejas a vida profissional de um médico, ele inveja, mais do que imaginas, a tua vida social. Agora pensa comigo: achas que o Honoris Causa é dado de mão beijada? E digo-te mais: estou quase certo de que não vês um Honoris causa "com o novo modelo Mercedes anotado ao lado com post-it's de extras a requisitar".
    A tua noção de realização pessoal é puramente materialista... para mim, nem maldito és. Quanto muito, meio maldito.

    Apesar de tudo, escreves bem.

    Saudações

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  2. Invejar a vida de um médico é aquilo que meio mundo faz, mas eu nao faço. Trato de descrever, não de cobiçar, caro e prestigiado amigo.
    Formalidades à parte, vida de enfermeiro tem tanta sobrecarga horária como o horário de um médico; ambos fazemos bancas, ambos "comemos" micróbios dois dias seguidos sem nos deitarmos 10 minutos que sejam na maca mais próxima; Esquece a vida social, colega maldito. De facto, se fosse essa a questão, manda a hierarquia social que o médico viaje em Congressos, seja distinguido em festas, tome partido em missões nos mais diversos países e tenha maiores hipóteses de engate, e continua por aqui fora, ou estou falando mentira?
    E não será afinal o materialismo mais pendente para a classe com mais posses?
    Atribuo a inteligência ao médico pelo seu sucesso escolar, e tiraria o chapéu a qualquer Honoris Causa decente, mas não àqueles que não merecem o respeito a que me digno porque não me tratam como igual, só porque os meus miolos estouraram quando passava pelo secundário. Como disse, caro Pitt, faço a mais coreografada vénia do ballet russo ao meu brilhante amigo Elias, e acredita que ele não anda de Carocha. O que me "faz comichão" não é ser um médico, é ser-se uma pessoa mal formada que tira partido de uma posição social de prestígio e glamour para fazer outros de parvos e moldar o mundo à sua imagem.
    Termino com a magia do dinheiro no ar: O dinheiro recolhido nas clinicas nem sempre é usado só para a manutenção e não são só os correctores da bolsa e os traficantes que se vêm nos filmes a lavar e a extraviar dinheiro. Dinheiro por baixo da mesa + comité internacional = Honoris Causa. E não seria o primeiro assim.
    O que dirias de um médico sem simpatia e que não pousa os olhos no doente durante a consulta, com 3 diplomas pregados na parede? Só o meu pai sabe as palavras certas...

    Cordialmente atesto para finalizar que não são generalizações e a carapuça serve a quem tem o tamanho de cabeça certo.

    Aceito o desmentido de que não seja um maldito, e atribuo-o à confusão que anda por essas cabeças a tentar desvendar a identidade deste estranho.

    Sublimes cumprimentos a todos

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  3. Dito dessa maneira, parece que tens alguma razão. Contudo, não vou entrar num mundo do qual conheço pouco. Não sou estudante de medicina, apenas revoltei-me perante o teu "julgamento final" aos médicos.

    Nota: sinto me ofendido! porque haveria de ser um tal Pitt? Desculpa, mas deves andar a confundir identidades.

    Saudações

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  4. Pista falsa ou pista verdadeira?

    "Ouve il segreto (...)" !

    O jogo do mistério, do oculto, do bloqueio, de arrancar cabelos é malicioso.

    Alter Ego. O que quer dizer? Um anagrama? Talvez. Uma palavra de sentido lato? Digamos que é uma hipótese plausível.
    Horas de xadrez e de puzzles treinaram a minha paciência e destreza mental, quase roçando pela agorafobia "Espinoziana". Aprendi que não é preciso saber meditar para pensar em planos eficientes calmamente nem é preciso ter Mestre no nome para ser discípulo da sabedoria. Escondo a cara, mas não atrás de uma fotografia pós operatório que teima em aparecer - uso o véu do poder psicológico e virtual. Gostei em tempos de brincar aos índios e cowboys, nunca tendo encontrado um "pele vermelha" tao eruditamente equilibrado e humorado como este maldito. Sedutor? Nunca fui, mas não temo concorrência de um Clooney apagado: bastar-me-iam palavras tão mais simples que as de um tal Pataca com um dialecto por demais luxuoso e demasiado eloquente, para provar um papel de Doutor Melo, por um dia.

    Gosto do que tratam, gosto da vossa escrita, gosto da vossa sátira, malditos. Faço-vos a vénia, a que respeitosamente mereceis.

    Digo-vos: O lugar do morto é para aqueles que entraram no sempre nobre icbas, no ano em que nuestros hermanos foram campeões europeus pela última vez.

    Denis Diderot dizia: "A imortalidade é uma espécie de vida que nós adquirimos na memória dos homens ", e este é o meu voto de sucesso para todos vós.

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